quarta-feira, 31 de março de 2010

Aos 30 anos do martírio de São Romero


Celebrar um Jubileu de nosso São Romero da América é celebrar um testemunho que nos contagia de profetismo. É assumir comprometidamente as causas, a causa, pelas quais nosso São Romero é mártir. Grande testemunha é ele no seguimento da Testemunha Maior, a Testemunha Fiel, Jesus. O sangue dos mártires é aquele cálice que todos, todas, podemos e devemos beber. Sempre e em todas as circunstâncias a memória do martírio é uma memória subversiva.
Trinta anos se passaram daquela Eucaristia plena na capela do “Hospitalito”. Naquele dia nosso santo nos escreveu: “Nós acreditamos na vitória da ressurreição”. E muitas vezes, disse ele, profetizando um tempo novo, “Se me matam ressuscitarei no povo salvadorenho”. E, com todas as ambiguidades da história em processo, nosso São Romero está ressuscitando em El Salvador, em Nossa América, no Mundo.
Este jubileu tem de renovar em todos nós uma esperança, lúcida, crítica, mas invencível. “Tudo é Graça”, tudo é Páscoa, se entrarmos a todo risco no mistério da Ceia partilhada, da Cruz e da Ressurreição.
São Romero nos ensina e nos cobra que vivamos uma espiritualidade integral, uma santidade tão mística quanto política. Na vida diária e nos processos maiores da justiça e da paz, “com os pobres da terra”, na família, na rua, no trabalho, no movimento popular e na pastoral encarnada. Ele nos espera na luta diária contra essa espécie de “mara” monstruosa que é o capitalismo neoliberal, contra o mercado onímodo, contra o consumismo desenfreado. A Campanha da Fraternidade do Brasil, ecumênica este ano, nos recorda a palavra contundente de Jesus: “Vocês não podem servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro”.
Respondendo àqueles que na Sociedade e na Igreja tentavam e tentam desmoralizar a Teologia da Libertação, a caminhada dos pobres em comunidade, esse novo modo de ser Igreja, nosso pastor e mártir replicava: “Há um ‘ateísmo’ mais próximo e mais perigoso para nossa Igreja: o ateísmo do capitalismo quando os bens materiais se erigem em ídolos e substituem a Deus”. (...)
Sempre e cada vez mais, quando maiores sejam os desafios, viveremos a opção pelos pobres, “a esperança contra toda esperança”. No seguimento de Jesus Reino adentro. Nossa coerência será a melhor canonização de “São Romero da América, Pastor e Mártir”
Dom Pedro Casaldáliga

Fonte: http://afonsomurad.blogspot.com/

Teologia, um saber amoroso


“Se destruíres teus instrumentos de opressão, e deixares os hábitos autoritários e a linguagem maldosa; se acolheres de coração aberto o indigente e prestares todo socorro ao necessitado, nascerá nas trevas a tua luz e tua vida obscura será como o meio-dia. O Senhor te conduzirá sempre e saciará tua sede na aridez da vida, e renovará o vigor do teu corpo; serás como um jardim bem irrigado, como uma fonte de águas que jamais secarão” (Is 58,9-12).

A teologia se propõe a ser um discurso articulado sobre Deus e a partir de Deus, que é a fonte de toda Vida, a raiz e o princípio de todo amor, o próprio Amor (1 Jo 4,16). Isto confere ao saber teológico um grande diferencial, que toca sua estrutura interna. Fazer teologia é pensar e se expressar a partir do Amor, tal como se revelou na história da relação de Deus com seu Povo. Por isso, a teologia visa também aumentar a capacidade humana de amar.

A teologia não é um saber neutro, no qual o sujeito cognoscente se distancia com frieza matemática do objeto que pretende conhecer. Aliás, este próprio conceito de “neutralidade científica” está em crise, desde que um grupo significativo de pensadores afirmou que o olhar do observador influencia o resultado da observação, a começar do campo da microfísica e das estruturas moleculares. É parte intrínseca da teologia sua finalidade de levar o(a) teólogo(a) e a comunidade eclesial a conhecer o Deus-Amor. Ora, conhecer o Amor significa deixar-se amar, deixar-se tocar, aceitar ser iluminado por uma luz que não vem de si próprio (Sl 36,9). E ao experimentar o amor de Deus, amá-lo mais e, no Seu amor, amar a todas as suas criaturas (cf. 1 Jo 4,8). Se levarmos às últimas conseqüências a afirmação joanina de quem “quem ama conhece a Deus”, consideraremos que, no mínimo, o amor é a fé em potencial, ainda não plenamente manifestada.

Isso significa ainda que a teologia é simultaneamente uma reflexão sobre o amor (ágape-logia), que deve levar o ser humano a ser mais apaixonado por Deus e seu projeto salvífico em relação à humanidade e ao cosmos. A linguagem mais adequada para se aproximar deste mistério fontal, comporta algo específico. A teologia cristã, desde os princípios, vive a tensão entre poder falar de Deus, pois Ele mesmo se revelou (dimensão katafática), e reconhecer que todo discurso sobre o Senhor não consegue abranger a grandeza e a profundidade do Divino (dimensão apofática).
Porque é um falar sobre o Amor, a partir do Amor e visando fazer o ser humano mais amoroso, a teologia não pode lidar somente com conceitos. Toda a história da teologia no ocidente, especialmente a partir da escolástica, levou a uma grande conquista: refletir de Deus com conceitos abalizados. É algo irrenunciável para realizar a tarefa de “dar razões para nossa esperança”. Mas a teologia necessita também recorrer à história de Deus nas vidas das pessoas (caráter testemunhal) e lançar mão das analogias e da linguagem poética. Só assim, numa pluralidade de linguagens e abordagens, deixar-se-á tocar pelo mistério amoroso de Deus.

Não se trata novamente de compartimentar a teologia, reservando somente para a espiritualidade a dimensão amorosa da teologia; para a moral seu aspecto ético; e para as outras disciplinas seu caráter racional. Toda e qualquer disciplina teológica precisa estar embuída de espiritualidade, pois é um discurso que leva a conhecer e deixar-se conhecer por Deus, viver em intimidade com o Senhor, amá-lo e servi-lo. Comporta também uma dimensão ética, pois o serviço a Deus e ao seu Reino se visibiliza nas relações interpessoais e nas estruturas culturais, sócio-políticas e econômicas.
Quando se afirma que a teologia é um discurso amoroso sobre Deus, leva-se em conta que o afeto é componente essencial desta forma específica do saber. No entanto, isso não significa fideísmo, ou um discurso religioso ingênuo e adocicado pelo pietismo. A teologia não pode abandonar a coerência dos conceitos, o necessário uso da razão, de forma crítica e construtiva, e a articulação com os outros saberes humanos. Enquanto exercício da razão iluminada pela fé, é o amor lúcido, o amor pensante. Fazer teologia exige tanto o distanciamento crítico da razão quanto o envolvimento amoroso da fé. Desta tensão salutar emerge o diferencial da teologia.

É bom sinal quando um instituto de teologia, ao fazer sua avaliação anual com os alunos e professores, se pergunta: em que sentido a aprendizagem da teologia nos ajudou a conhecer, amar e servir melhor a Deus e a seu Povo. Em que aspectos auxiliou a peregrinação espiritual dos professores e dos alunos? Uma das tentações mais fortes de qualquer forma de saber, inclusive da teologia, é levar à auto-suficiência, nutrindo o orgulho e a vaidade. A lógica sutil consiste em: “porque sei mais do que os outros, sou melhor do que eles”. Assim, o conhecimento racional ocupa o lugar do conhecimento intuitivo e teologal (conhecer a Deus, ao viver a fé, a esperança e a caridade) e parece dispensá-lo. Na realidade da comunidade eclesial, os dois se completam. O (a) teólogo(a) é intérprete não somente dos dados teológicos da Escritura, na corrente da Tradição viva de sua Igreja, mas também das manifestações atuais da fé, na sua beleza e ambigüidade.
Afonso Murad

Fonte:http://casadateologia.blogspot.com/search/label/Teologia%20saber%20amoroso